Nunca na história daquele país tropical
deitado às margens do Atlântico Sul o povo foi tão feliz. Esta, pelo menos, é a
versão oficial e não temos motivos para duvidar de qualquer versão oficial. Se
for oficial, deve ser verdade. Mas, quem observa esta felicidade toda não faz ideia que, num passado relativamente recente, aquele povo passou por um período
bem conturbado da sua história. Há uns cinqüenta anos, elegeram um demagogo
meio maluco para presidente, que não chegou a esquentar lugar na cadeira
presidencial e renunciou, forçado – segundo ele – por “forças ocultas”. As
forças eram tão ocultas que até hoje ninguém ficou sabendo quem eram. Assumiu o
vice. Este vice, já presidente, irritou muito as forças armadas do país por
demonstrar uma indisfarçável simpatia pelos regimes comunistas do leste
europeu. O pessoal de verde perdeu as
estribeiras e resolveu “fazer democracia com as próprias mãos”. Derrubou o
presidente, tomou o poder e gostou tanto dele que só devolveu uns vinte anos
depois.
A turma de farda era fogo. Demonstrou
logo ter muito pouca paciência. Mandava descer a borracha, dar sumiço nos
adversários, enfim, praticava a modalidade de democracia feita à bala. Apesar
da dureza do regime, mantinham um simulacro de parlamento, onde o voto dos
parlamentares era rigidamente controlado. O instrumento de controle era o voto
aberto. Se algum parlamentar, mesmo que por distração, votava contra a
orientação do regime, a turma de farda ficava sabendo e o infeliz podia se
considerar feliz caso perdesse apenas o mandato. Só daria para votar contra o
regime se o voto fosse secreto. Foi uma longa briga até que o regime militar,
já capengando, consentisse na aprovação do voto secreto dos parlamentares. Foi
uma vitória da democracia e o povo comemorou muito. O parlamento, protegido
pelo sigilo do voto, criou coragem de votar contra os militares, que devolveram
o poder aos civis pouco tempo depois.
Contei tudo isso porque uma das propostas
de assuntos para o plebiscito é o fim do voto secreto nas seções dos
parlamentos. Sabendo o que acabei de contar, algum leitor pode achar que o fim
do voto secreto vai ser uma repetição da história recente para aquele povo.
Mas, não se preocupe, caro leitor. Os tempos são outros. A democracia está
segura. Hoje ninguém naquele país acha que a mídia é golpista e deve ser
controlada, ninguém quer sujeitar o Supremo Tribunal de lá, ninguém quer
manietar o Ministério Público, ninguém quer calar os adversários, nenhum
partido quer se perpetuar no poder. Então, a democracia deles não corre
qualquer risco.
O que acontece é que aquele povo vota em
quem não confia e depois quer que seu representante defenda seus interesses –
do povo – e não os dele - parlamentar. Atualmente, quando alguma proposta de
interesse popular é rejeitada pelos parlamentares, apenas uma meia dúzia admite
haver votado contra. A maioria desconversa, faz um joguinho de empurra e fica
por isso mesmo. A possibilidade do fim do voto secreto deixou muito parlamentar
ressabiado.
“-Mas, assim o todo mundo vai saber como
a gente vota. O povo. A oposição. Como é que a gente vai se explicar?”
Foi uma dúvida danada. O que resolver? O
quê não resolver? Até que um, mais esperto pouquinha coisa, resolveu a questão:
“-Ora, a gente também vai saber como os
outros votam.”
Nada muda. Então, parece que o fim do
voto secreto vai mesmo para o plebiscito.
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